terça-feira, 1 de maio de 2018

A Devastação do Silêncio (João Reis)

Talvez não tenha sido a pior sorte que lhe poderia ter calhado acabar naquele campo de prisioneiros - ainda que o facto de lhe terem sido tirados os documentos que provavam a sua patente lhe tenham retirado a esperança de uma transferência para um lugar melhor. Ainda assim, nem tudo é mau - excepto a fome. A fome é difícil de suportar. E, enquanto tenta lidar com ela e com a conversa e os ruídos incessantes que parecem rodeá-lo, o capitão vai observando, pensando, recordando. E o tempo passa, mas o silêncio, esse, persiste em fugir...
Escrito num registo muito próprio e de contrastes bastante vincados entre o inevitável rosto sombrio da guerra e uma visão tão peculiar que, às vezes, não consegue ser senão divertida, este é um livro difícil de descrever. É um livro de estranhezas, a começar, naturalmente, pela estranheza do protagonista, que, apesar da dificuldade das suas circunstâncias, parece perder-se em pensamentos e comportamentos estranhos para evitar ou escapar à sua realidade. Há também um certo distanciamento, com a história a ser contada a partir do futuro, o que, além de dar uma perspectiva diferente às recordações, contrasta com os (também inevitáveis) momentos mais sombrios da narrativa.
Sendo como é uma narrativa de contrastes - entre os dois lados do conflito, entre a experiência da guerra e o mundo que parece ter ficado do outro lado, até mesmo entre as diferentes personagens - é apenas natural que também o próprio protagonista seja uma figura de contrastes. Por um lado, a forma como olha para os outros é, a partida, pouco capaz de despertar empatia. Mas, consideradas as circunstâncias, e à medida que novos momentos surgem, essa empatia acaba por se manifestar - de um modo estranho, também, mas por isso mesmo mais surpreendente. E sendo tudo menos uma história linear, também não surpreende que não haja respostas nem conclusões definidas para tudo. Surpreende, sim, o facto de, mesmo sem essas respostas, tudo parecer atingir o equilíbrio certo. O que é dito importa. O que fica for dizer... fica bem assim.
E há ainda a escrita que, num registo tão diferente, por exemplo, de A Avó e a Neve Russa, manifesta, ainda assim, a mesma firmeza e a mesma fluidez. Pode não ser fácil compreender o protagonista deste livro, mas nunca será por falta de clareza ou de expressividade. Tudo está lá, sem margem para mal-entendidos. E o todo, esse, é cheio de surpresas e de afirmações memoráveis.
No fim, fica a impressão fascinante de ter feito um longo percurso num livro relativamente breve. Um livro que, com a sua escrita precisa e a sua visão complexa e surpreendente do homem e das suas circunstâncias, cativa ao longo de todo o caminho e fica na memória depois do fim. Recomendo.

Autor: João Reis
Origem: Recebido para crítica

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